Da veracidade dos fatos que aqui narrarei pouco se sabe, mas
prometo tentar reproduzi-los tais quais me foram contados, há tempos
imemoráveis, por alguém que agora também já não me lembro, mas de cuja
honestidade ninguém jamais houve de duvidar. Você, não obstante, reserve-se o
direito de não acreditar em uma palavra sequer do que digo, pois eu-eu-mesmo
também encontrei resistência quando me juraram esta mesma verdade que lhe juro
agora.
Diz-se que há muito, muito tempo, em um desses vilarejos
modernos, cercados de colinas e arvoredos, por onde só os aventureiros mais
pacientes se arriscam a passear, perto da costa e das gaivotas, vivia
moderadamente o Bom Homem e sua família: esposa e dois filhos. Oh! permita-me a
lembrança tardia: Papel era o nome do vilarejo—do latim, papȳrus—; um dos
lugares mais belos que já conheci!
Assim como todos os bons homens do lugar, Bom Homem tinha
seus afazeres: era trabalhador honesto; levantava cedo, fazia a barba, deixava
um beijo na testa de cada filho e da esposa antes de sair para pegar o trem e
chegar pontualmente às sete e quarenta e sete da manhã à Fábrica, onde
trabalhava até antes do pôr-do-sol. Às seis e doze da tarde ou da noite, depois
do longo dia de labor, descia na estação do vilarejo e seguia por ruas de pedra
retangular até alcançar a Praça, onde todos os dias comprava pães e uma caixa
de leite. Descia a Rua das Curvas, virava à primeira esquina e logo estava em
casa mais uma vez, grato e cansado—mas nunca indisposto a amar os filhos e a esposa,
cada qual a seu modo.
Conta-se que, numa quinta-feira dessas em que Bom Homem
descia na estação e percorria seu trajeto habitual de volta para casa, ele se
esbarrou acidentalmente em uma Moça. Olharam-se por dois ou três segundos e
esse tempo foi mais do que o suficiente para acender em Bom Homem a chama de um
sentimento novo. Desculparam-se mutuamente pelo descuidado e seguiram seus
respectivos caminhos.
Nos dias que sucederam, voltaram a se encontrar, mas sem
esbarrões, fortuitamente, no mesmo ponto; e no mesmo ponto trocavam o mesmo
olhar; e no mesmo olhar sentiam que havia alguma coisa acontecendo entre eles.
Até que um dia, finalmente, depois de muita ponderação, Bom Homem tomou a
iniciativa de desejar à Moça boa tarde. Espantadíssima com a atitude inesperada
do estranho, ela sorriu e respondeu ao cumprimento de modo singelo, encolhendo
os ombros e ajeitando uma mecha de cabelo por trás da orelha.
Foi nesse dia que Bom Homem e Moça se perceberam
apaixonados.
Não precisaram marcar nenhum compromisso: todos os dias se
encontravam na Praça e por lá conversavam ao longo de dez ou quinze minutos,
tempo de que Bom Homem dispunha para conhecer a donzela e, depois, dar
continuidade ao seu trajeto, pois, apesar de sua paixão, ainda era casado e pai
de dois filhos pequenos; não podia se dar o luxo de gastar seu precioso tempo
em uma praça conversando com uma Moça tão bela quanto aquela. Proseavam, riam, descobriam-se
e, cada dia mais, enamoravam-se.
Três meses depois, já não havia mais remédio: estavam
perdidos em paixão, e aqueles encontros ligeiros na Praça já não bastavam para
apagar a chama daquela saudade esmagadora que tomava conta dos corações depois
que se despediam à noitinha. E foi por esse motivo que Bom Homem tomou a
decisão mais importante de sua vida: divorciar-se da esposa.
Quando informou Moça de sua decisão, ela arregalou os olhos
e tampou a boca, incrédula e temerosa. Mas Bom Homem estava irredutível: separar-se
de sua esposa para ficar com Moça era seu mais urgente desejo; e assim ele o
fez, numa noite chuvosa de quarta-feira, depois de chegar ensopado em casa, sem
encontrar Moça ao longo do caminho. Enquanto os filhos cochilavam no quarto,
Bom Homem pediu à esposa divórcio sem rodeios. Ela se desfez em lágrimas; ele
se comoveu em silêncio: não poderia se sensibilizar pela dor da mulher, ou
jamais seria feliz ao lado de Moça.
Nas semanas que seguiram, deram conta da papelada no
Cartório. Os filhos se amuaram e lamentaram deveras a partida do pai, ainda
pequenos demais para entender plenamente o que estava acontecendo. Eles
ficariam sob a guarda da mãe, que consentiu com a visita semanal do pai. De bom
grado e sem qualquer névoa de litígio, Bom Homem se dispôs a continuar arcando
com todas as despesas referentes aos filhos que lhe diziam respeito, assim como
se dispôs a ajudar a ex-esposa na criação das crianças como bem fosse necessário.
Quando isso tudo foi resolvido, Bom Homem e Moça foram
livres para ser felizes, mas não há muitos registros a respeito da vida conjugal
dos dois. Sabem-se por certo de apenas duas coisas: primeiro, que ambos se
casaram, mas não tiveram filhos; viveram uma vida pacata e sem grandes
aspirações, mas, acima de tudo, muito amável; e, segundo—e disto nenhum historiador,
biógrafo ou curioso discorda—, que, do instante de seu nascimento até seu
suspiro de morte, o Bom Homem nunca saiu do Papel.
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