Eu não saberia te explicar como vim parar aqui, assim como
não saberia te dizer quando ou sob quais circunstâncias nasci. Sei apenas que
existo e estou aqui, também não sei há quanto tempo. Acordei assim. Não tenho
memórias da minha vida, nem sei se tenho vida. Não sei o que veio antes de hoje e
acredito que amanhã este dia se repetirá, e depois de amanhã também, e para
sempre, até a morte, se ela vier. Não sei se ela sabe o caminho pra cá, ou se
ela sabe que há vida aqui, ou se há vida afinal. Moro onde talvez ela não me
encontre, mas não fiz de propósito: estou aqui porque sim.
Moro numa casa simples: um cômodo. Um cômodo, um banheiro e uma cabine. Tenho cama, colchão, comida, sanidade e silêncio. Não sei cozinhar, mas ainda não morri de fome. Não preciso me alimentar, talvez porque a comida sempre aparece sobre a mesa ou dentro da geladeira que não existe sem que eu precise comprar, o que seria impossível, já que não existe outra alma senão a minha neste lugar sombrio. Também tenho um espelho, mas não consigo me ver muito bem. Talvez minha visão seja comprometida e eu precise de óculos. Vejo traços esparsos e uns contornos um tanto abstratos. Mas, se olhar pra baixo, consigo ver meus pés e o chão em que piso. Na minha casa tem uma televisão e telhado de madeira barata, que nunca despencou, mas acho que vai, porque o tempo não está nada bom.
Ouvi dizer que este mundo aqui vai acabar por causa da
tempestade, o que é engraçado, pois não conheço outra voz senão a do meu
pensamento. Não sei falar, só sei pensar; e não sei se o som do meu pensamento
seria o som da minha voz. O céu está o de sempre, mas, hoje, mais grave: aqui,
não existe noite nem dia, nem sol nem chuva, nem frio ou calor. Existe o Céu e
só, e Só. Nem azul nem nublado nem negro ou estrelado: o céu daqui é de um
marrom cor de terra que se mistura a tons mais claros de marrom de nuvem e
torna minha vida um tom pastel. Não sei o que é luz ou o que são trevas, mas lá
em casa tem uma vela que nunca apaga. Uma vez tentei sair, fugir. Cansei-me
daqui e fui andando. Alcancei uma pradaria de grama tão marrom quanto o céu,
talvez um pouco mais escura, e caminhei por minutos que não contei. O horizonte
se mantinha imóvel diante dos meus olhos, e a vegetação seguia junto comigo. Olhando
pra trás, então, percebi que minha casa estava exatamente no mesmo lugar. Ela
me acompanhava ou eu não saíra do lugar.
Então desisti de escapar. Meu mundo era tão infinito quanto
eu; eu pertenci a ali. Mas acho que isso tudo vai acabar. Há uma tempestade, e
ela ameaça cair há meses. O tempo aqui é eterno; um dia são dezenas; não sei se
ela virá ou não, mas temo que, quando vier, ela há de acabar com esse eterno
anoitecer. Mas não tenho medo. A solidão me amargura, mas não sei o que é ter
companhia. O Silêncio me acompanha durante todo o tempo, e não conheço outro
som senão os do meu pensamento e o do ranger dos meus dentes enquanto mastigo
um pedaço do pão que me alimenta todos os dias. Não conheço outro sabor senão
esse.
Não sei ser feliz ou triste, mas sei esperar. Espero por um
começo, meio, ou fim, que não sei dizer se virá. Meu mundo se cansa de mim, mas
eu não me canso dele. Talvez por isso ele se acabe: eu já o esgotei. Sei
sonhar, também. Sempre sonho que estou em lugares que não conheço, com pessoas
que não sei quem são, fazendo coisas que não sei fazer. Quando acordo, minha
vela me observa e me lembra de que meus sonhos só duram enquanto meus olhos são
fechados. E eu suspiro e me sento à porta novamente, olhando aquele objeto
redondo que enfeita meu Céu mas não é nem sol nem lua. Não sei o que são
estrelas. Gosto das nuvens, entretanto, embora elas me pareçam artificiais.
Sinto que eu poderia tocá-las se eu subisse em uma cadeira, mas aqui não tem
cadeiras.
Uma vez sonhei com um carteiro. Ele me perguntava o nome daqui,
e eu não sabia responder. “Vai ter uma moça aqui”, ele disse. Eu também questionei e ele também não soube
explicar. Falou sobre sentimentos e tentou me explicar o que era amor, mas
fracassou. Talvez fosse mais fácil me explicar o que era o verde que eu nunca
vira naquele mundo marrom. “Você não vai ficar aqui pra sempre”, ele continuou.
“Como sabe disso?” ele também não conseguiu dizer. Era difícil nos comunicarmos
sem palavras; nossos pensamentos se transmitiam, mas eu não conseguia sentir
aquele homem de cabeça branca e uniforme estranho. “Tem correspondência?”, eu
perguntei. “Pra você?”, ele quis saber. “Claro”,
respondi. “Você não existe; quem te mandaria cartas?”
Acordei achando aquele sonho um tanto estranho, eu me lembro
bem. Você já sonhou com algo que não conhece? Sonhei com um homem... que vestia
um uniforme... e falava de amor... O que é o verde, afinal? Imagino que as
coisas devam ser bonitas fora daqui, e também gosto de acreditar que fora deste
universo existam outras pessoas menos solitárias do que eu. Não me importo com
a solidão porque não sei sentir, mas às vezes é como brincar demais com um
brinquedo legal, sabe? Não tenho mais o que extrair da solidão: a solidão sou
eu; é ela que me sente. Quando procurei, lá fora, por alguém pra falar comigo,
só senti o vento bater no meu rosto, mas sem fazer barulho algum, por isso
voltei e não saí mais, por muito tempo; um tempo que eu não sei dizer, porque
não sei o que é tempo, afinal. Esta casa vazia não é meu lar, essas horas mudas
não são minha vida, meu não-existir é minha indagação irresoluta, aquele
carteiro foi tudo que tive.
Minha profecia não poderia estar mais certa. Acordei de novo e olhei
pela porta da minha casa, isolada no centro de Nada, e olhei para o Céu, e lá
estava a Esfera Sem Nome, olhando pra mim. E, pela primeira vez, houve som! As
folhas da vegetação farfalhavam e produziam um barulho incrível!, incrivelmente
assustador! Depois, um estrondo muito forte, algo que, assim como todos os
sons, eu jamais ouvira, agrediu meus ouvidos e me fez soltar um grito — sim! Um
grito! Eu ouvi minha própria voz! E depois se fez luz! E água! E vento! E num
piscar de olhos, perdido no meu riso inédito, eu me vi me desfazer num vórtice que girava
mais rápido do que mil velocidades que eu jamais conhecera e acordei sobre a
cama de um quarto cheio de cores que eu também jamais conseguiria explicar, mas
conseguia ver.
Eu estava vivo.
Eu não sabia o que eram todas aquelas coisas, mas devagar
fui aprendendo. E me lembrei de minha história, ou de pedaços dela, e fazia
vaga noção de como havia parado ali. Eu sabia que nascera, que tinha um nome,
do qual eu ainda não me lembrava, e de que uma série de coisas estava prestes a
acontecer. Então levantei-me e saí dali. Olhando pela primeira janela que me
veio à frente, vi o Mundo. Tantas coisas que eu não conhecia! Tantas coisas pra
aprender a nomear! O Céu agora tinha cor! Tudo tinha cor! Meus olhos
maravilhavam-se de Novo! As coisas começavam a ganhar nomes na minha mente:
prédios, casas, carros, e logo outros seres iguais a mim — pessoas! Muitas
pessoas! E sons de todas as sortes! Corri até a porta e saí daquela casa,
andando sem rumo, olhando tudo ao meu redor. Sorri e, pela primeira vez, senti
um calor no peito, uma sensação... uma Sensação! E me vi no espelho: eu tinha
um rosto, e contornos, e um sorriso! Então corri, com aquela Sensação e sem
rumo. O Tempo agora era móvel: as nuvens passeavam pelo céu e a Esfera Sem Nome
tinha um brilho forte, que logo ficou opaco e deu lugar a outra esfera — Sol e
Lua, eu sabia seus nomes! E estrelas! E, pela noite, voltei ao quarto onde
acordara e me deitei, sentindo ainda aquela Sensação que, aprendi, se chamava
Alegria.
Nos meus sonhos, encontrei o carteiro novamente. “Tem carta”,
ele disse, entregando-me um envelope. Ela
virá, dizia o bilhete. “É só isso?”, perguntei. “É, sim”, ele respondeu. “Você
sabe o nome daqui?”, perguntei. “Este lugar ainda não tem nome”, ele respondeu,
“mas vai ter”. “Quem é você?”, quis saber. “Sou um carteiro: entrego
correspondências e sei das coisas”, ele disse. “O que aconteceu comigo? Por que
estou aqui?”, questionei, guardando minha carta no bolso. O carteiro me olhou
com aparente desconfiança e, analisando-me, respondeu após alguns segundos: “Você
acabou de nascer. O mundo é novo; você vai ter tempo”. “Mas o
que sou eu?”, perguntei. E ele riu, achando tola minha pergunta, certamente. “Você
é o livro que não foi acabado; o poema que não foi escrito; o personagem que
não foi inventado... Você é aquele projeto abandonado, esquecido; aquele
rabisco no papel que não virou estória; aquele homem apaixonado que não
descobriu o amor; você é a vítima do crime do poeta”. O carteiro coçou o nariz
e ajeitou os óculos sobre o rosto. “Mas você teve sorte: está aqui porque
nasceu, mas sua história acabou de começar a ser escrita, e deste livro eu não
farei parte”, continuou. “Mas... o que vai acontecer comigo quando esta
história acabar?”, perguntei, confuso. “Você será imortal”, respondeu o
carteiro antes de desaparecer.
Ela virá, dizia o
bilhete. Eu não sabia quem era ela ou se ela de fato viria, mas o mundo
resplandecia em frente aos meus olhos: eu não poderia duvidar. Meu quarto agora
tinha cor e o mundo tinha luz. Meu universo era maior e minha cama, mais
confortável. Meu coração era quente e as coisas tinham nome. Eu acabava de
nascer com a certeza de que logo seria imortal. Sabia que ela viria, e queria muito conhecê-la. Voltei para o meu quarto e
acordei sob cobertores macios com a luz do sol batendo forte janela adentro.
— Vamos acordar, meu amor? Olha como o dia está lindo! –
disse Beatriz abrindo as cortinas.
Sorri. Minha história começava a ser escrita.
Fantástico!!! Me prendeu do início ao fim.
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