segunda-feira, 11 de maio de 2015

O Bom Homem

Da veracidade dos fatos que aqui narrarei pouco se sabe, mas prometo tentar reproduzi-los tais quais me foram contados, há tempos imemoráveis, por alguém que agora também já não me lembro, mas de cuja honestidade ninguém jamais houve de duvidar. Você, não obstante, reserve-se o direito de não acreditar em uma palavra sequer do que digo, pois eu-eu-mesmo também encontrei resistência quando me juraram esta mesma verdade que lhe juro agora.

Diz-se que há muito, muito tempo, em um desses vilarejos modernos, cercados de colinas e arvoredos, por onde só os aventureiros mais pacientes se arriscam a passear, perto da costa e das gaivotas, vivia moderadamente o Bom Homem e sua família: esposa e dois filhos. Oh! permita-me a lembrança tardia: Papel era o nome do vilarejo—do latim, papȳrus—; um dos lugares mais belos que já conheci!

Assim como todos os bons homens do lugar, Bom Homem tinha seus afazeres: era trabalhador honesto; levantava cedo, fazia a barba, deixava um beijo na testa de cada filho e da esposa antes de sair para pegar o trem e chegar pontualmente às sete e quarenta e sete da manhã à Fábrica, onde trabalhava até antes do pôr-do-sol. Às seis e doze da tarde ou da noite, depois do longo dia de labor, descia na estação do vilarejo e seguia por ruas de pedra retangular até alcançar a Praça, onde todos os dias comprava pães e uma caixa de leite. Descia a Rua das Curvas, virava à primeira esquina e logo estava em casa mais uma vez, grato e cansado—mas nunca indisposto a amar os filhos e a esposa, cada qual a seu modo.

Conta-se que, numa quinta-feira dessas em que Bom Homem descia na estação e percorria seu trajeto habitual de volta para casa, ele se esbarrou acidentalmente em uma Moça. Olharam-se por dois ou três segundos e esse tempo foi mais do que o suficiente para acender em Bom Homem a chama de um sentimento novo. Desculparam-se mutuamente pelo descuidado e seguiram seus respectivos caminhos.

Nos dias que sucederam, voltaram a se encontrar, mas sem esbarrões, fortuitamente, no mesmo ponto; e no mesmo ponto trocavam o mesmo olhar; e no mesmo olhar sentiam que havia alguma coisa acontecendo entre eles. Até que um dia, finalmente, depois de muita ponderação, Bom Homem tomou a iniciativa de desejar à Moça boa tarde. Espantadíssima com a atitude inesperada do estranho, ela sorriu e respondeu ao cumprimento de modo singelo, encolhendo os ombros e ajeitando uma mecha de cabelo por trás da orelha.

Foi nesse dia que Bom Homem e Moça se perceberam apaixonados.

Não precisaram marcar nenhum compromisso: todos os dias se encontravam na Praça e por lá conversavam ao longo de dez ou quinze minutos, tempo de que Bom Homem dispunha para conhecer a donzela e, depois, dar continuidade ao seu trajeto, pois, apesar de sua paixão, ainda era casado e pai de dois filhos pequenos; não podia se dar o luxo de gastar seu precioso tempo em uma praça conversando com uma Moça tão bela quanto aquela. Proseavam, riam, descobriam-se e, cada dia mais, enamoravam-se.

Três meses depois, já não havia mais remédio: estavam perdidos em paixão, e aqueles encontros ligeiros na Praça já não bastavam para apagar a chama daquela saudade esmagadora que tomava conta dos corações depois que se despediam à noitinha. E foi por esse motivo que Bom Homem tomou a decisão mais importante de sua vida: divorciar-se da esposa.

Quando informou Moça de sua decisão, ela arregalou os olhos e tampou a boca, incrédula e temerosa. Mas Bom Homem estava irredutível: separar-se de sua esposa para ficar com Moça era seu mais urgente desejo; e assim ele o fez, numa noite chuvosa de quarta-feira, depois de chegar ensopado em casa, sem encontrar Moça ao longo do caminho. Enquanto os filhos cochilavam no quarto, Bom Homem pediu à esposa divórcio sem rodeios. Ela se desfez em lágrimas; ele se comoveu em silêncio: não poderia se sensibilizar pela dor da mulher, ou jamais seria feliz ao lado de Moça.

Nas semanas que seguiram, deram conta da papelada no Cartório. Os filhos se amuaram e lamentaram deveras a partida do pai, ainda pequenos demais para entender plenamente o que estava acontecendo. Eles ficariam sob a guarda da mãe, que consentiu com a visita semanal do pai. De bom grado e sem qualquer névoa de litígio, Bom Homem se dispôs a continuar arcando com todas as despesas referentes aos filhos que lhe diziam respeito, assim como se dispôs a ajudar a ex-esposa na criação das crianças como bem fosse necessário.

Quando isso tudo foi resolvido, Bom Homem e Moça foram livres para ser felizes, mas não há muitos registros a respeito da vida conjugal dos dois. Sabem-se por certo de apenas duas coisas: primeiro, que ambos se casaram, mas não tiveram filhos; viveram uma vida pacata e sem grandes aspirações, mas, acima de tudo, muito amável; e, segundo—e disto nenhum historiador, biógrafo ou curioso discorda—, que, do instante de seu nascimento até seu suspiro de morte, o Bom Homem nunca saiu do Papel.

Nenhum comentário :

Postar um comentário

Seja gentil. Palavra feia não se diz.