sábado, 1 de fevereiro de 2014

Paraíso negro

Ele conhecia uma. Eu, coitado de mim, mal sabia das coisas. Quando me sentei neste banco de praça, não supus que seria abatido novamente por essas memórias. Já faz tanto tempo que, às vezes, acho que me esqueci de tudo aquilo. Mas que tolice a minha. Eu não sei que jamais me esqueceria de Matias, mesmo que eu vivesse outros sessenta e seis anos? Velho idiota!

Na época em que o conheci, Matias estava no auge. E acho que foi amor à primeira vista, se é que isso existe, se é que amor existe. Desgraçado... Oh, vida desgraçada. Por que é que eu fui sair de casa hoje? Aliás, que dia é hoje? Já faz tanto tempo. Não sei se comprei meus remédios deste mês. Que falta faz a Marcela.

No dia em que fui àquele bar com alguns amigos, que foi em 2009, algo assim Não me lembro. Minha memória agora só serve para falhar e trazer de volta essas coisas todas. Era um barzinho chic num bairro carioca, e lá estava ele tocando saxofone junto de um pianista. Ah, como eu odeio jazz! Ele adorava. E ele tocava divinamente. Um deus de ébano, ele. Negro, alto, usava uma boina, não sei por que. Combinava. Será que ele usava porque era careca? Mas, ora, é relativamente comum negro ser careca E, quando eu o vi, imediatamente o quis pra mim. Até parece que se pode tomar posse de alguém, assim, não é? Se bem que

Bom, lá estava ele, lindo, tocando aquele maldito sax dourado cujo som ainda me assombra de vez em quando. Nós flertamos durante boa parte da noite. As pessoas que estavam comigo não perceberam. Deixei todos em casa e, depois, voltei pra lá. Aí, sentei-me, lembro direitinho, numa mesa em frente ao palco, cruzei as pernas e fiquei vendo ele tocar, a noite toda, fumando e bebendo. Hoje eu já não faço nada disso. Por que foi que eu parei? Naquela noite mesmo, nós saímos e transamos a noite toda. Uma noite memorável, aliás.

“Que hora você termina aqui?”

“Daqui a pouco.”

A voz dele atravessava a minha alma.

“Quer ir pra algum lugar?”

Foi muito fácil. Levei ele pra minha casa e lá nós ficamos até amanhecer. Sim, uma noite memorável. O sexo de Matias... Ah, que homem. Nunca mais conheci outro homem como aquele. Suas medidas e seu gingado faziam juz à cor de sua pele marrom escuro. Meu paraíso negro, ele, eu dizia. Ele não gostava muito. Engraçado é que eu nunca antes havia me sentido atraído por alguém nesses moldes. Tem essa coisa de gostar dos loirinhos depilados e cabelo liso, não? Não posso falar nada; também já fiz parte desse grupo. Também gostava dos peludos. Que gostos estranhos. Que critérios eu tenho agora? Ainda tenho critérios? Quando foi minha última vez? Gente... Que velhice desgraçada. O último a quem paguei por sexo foi aquele fortinho... Esqueci o nome dele. Parece aquele rapaz ali, só que um pouco mais alto. Olha. Gostei dos bíceps. Regata branca e bermuda cáqui... sempre dá certo. Comigo. Esses garotos de hoje em dia

Eu sei que a gente começou a se encontrar mais vezes, e sexo era algo que não faltava. Quantos anos eu tinha? Se tenho sessenta e seis agora, devia ter uns vinte e oito? Matias uns vinte e cinco? Acho que é isso. Começamos a namorar em pouco tempo. Eu sempre ia vê-lo tocar, sozinho ou acompanhado, mas o mantive meio que em segredo por algum tempo. Não queria dividi-lo com ninguém; estava achando aquilo tudo muito... sabe? Já fazia algum tempo. O último, quem tinha sido? Roberto? Não lembro. Eu me apaixono e desapaixono tão rápido. Acho que me apaixonei ao sexo dele, primeiro, porque olha, era algo... Ele era uma pessoa fantástica, entretanto; não posso negar. Começamos a namorar e aí fomos nos apaixonando direito, com o passar do tempo. Às vezes ele levava o sax pra minha casa e tocava depois que fazíamos amor Não, a gente ainda não fazia amor naquela época, só sexo mesmo. Mas era bom. Só não sei por que ele tocava, mas ah, não me incomodava. Além dessa ele tinha algumas outras manias estranhas, mas deixa isso pra lá que não quero gastar minha memória com isso. Eu comprei meus remédios hoje?

A gente namorou por um bom tempo. Digo, anos, uns cinco; já não sei fazer as contas. Começamos quando... quando foi? A gente ainda era novo e meio inconsequente. Ele era mais novo que eu; eu não era tão novo assim, já estava quase com trinta... trinta e três agora, é isso? Quase uma vida. Não sei. Faz tempo. E quando a gente começou a namorar, era tudo tão bonito... Matias tocava pra mim e pensar que hoje em dia eu não suporto mais o som desse negócio... Tanta coisa pra se fazer no meio de uma praça pra ganhar dinheiro, por que você veio tocar sax, rapaz? Por que não virou uma estátua? Ainda bem que eu estudei, viu. Ele tocava esse negócio e eu acho que gostava; não me lembro de fingir que não. Éramos felizes, Matias e eu. Fomos felizes por um bom tempo. Só não me lembro o que foi que aconteceu que um dia chegamos num acordo, entramos numa decisão... Olha, esse negócio de casal apaixonado é fogo. Eu e o Matias tínhamos umas coisas... umas coisas que não são normais. Será que hoje em dia é normal? Naquele tempo eu acho que não era, mas ninguém sabia. Por que eu não contava sobre o Matias pras pessoas? Engraçado. O pessoal não sabia; eu não dividia com quase ninguém. Ah. fazíamos, na cama, coisas que tenho até vergonha de contar pros outros. Acho que preciso de um psicólogo, ou preciso dos meus velhos amigos de volta pra contar agora, na velhice, porque como consegui viver a vida toda sem compartilhar aquilo com ninguém? Meu Deus. Tanto absurdo

Eu não sei o que deu na nossa cabeça. Não, eu acho que eu sei. A gente tinha uma coisa engraçada, uma relação de confiança que não era a confiança que se tem no sentido de saber que seu parceiro não vai estar com outra pessoa quando você não estiver por perto; era uma confiança de saber que eu era parte dele e ele de mim. É amor, isso? Acho que amor passa por outros caminhos, não? Paixão? Tesão? Obsessão? O quê? Preciso de uma psicóloga. A gente era meio que um do outro, mesmo; eu dele e ele meu. Mas ele era extremamente ciumento. Eu não, sempre fui tranquilo porque sabia das coisas. Ele morria de ciúme... Cretino. Nós éramos um só: eu era ele e ele era eu. Nossa liberdade era, basicamente, essa. Não sei por que, um dia inventamos uma Acho que a gente tava bêbado, não sei. Inventamos uma coisa... um... o quê? Fizemos um acordo.

“Por que você quer fazer isso?”

“Sei lá, acho excitante, você não acha?”

É lógico que eu não achava excitante! Mas ele tinha umas coisas

“Não acho, não... Mas se você quiser tentar”

Eu fazia tudo por ele. Imbecil. Hoje eu faria tudo diferente. Mas naquela época eu estava apaixonado a um ponto que eu não sabia mais se conseguiria continuar vivendo sem aquele homem, sabe como é isso? Que coisa engraçada. Minha filha comentou comigo uma vez aquela história, aquele mito, ou lenda?, que nome se dá?, aquela história de que no começo éramos um só daí fomos divididos em dois e por isso as pessoas têm uma alma gêmea, que é a outra metade da sua alma... eu acho que Matias foi minha alma gêmea e hoje por isso sou órfão de mim mesmo. É bem possível. Ele inventou que queria experimentar ir a uma casa de suingue Ainda se usa esse termo?

“Você não acha excitante?”

“Não acho, não”

Eu não sei o que deu na cabeça daquele homem. Ele quis e eu aceitei.

“Você quer fazer sexo com outros caras, é isso? Eu não basto?”

“Claro que basta, e você sabe disso, é só Você não acha excitante?”

“Não, não acho”

Ele conhecia uma. Eu, coitado de mim, mal sabia das coisas. Digo, sabia que existiam essas coisas, só não sabia que Onde era mesmo o lugar? Era em um bairro, não me lembro o nome... Memória miserável. Fico me perguntando como Matias conhecia aqueles lugares, meu Deus. Aquilo era imundo. Digo, as pessoas Olha, eu não sei, meu pai, não sei por que eu fazia tudo por aquele homem... Aquele lugar era o inferno, ou o inferno era aquele lugar. Como ele sabia dessas coisas? Um cheiro horrível de esperma. Esperma nunca me enojou, muito pelo contrário, mas aquilo ali ultrapassava os limites... quaisquer limites. Tudo muito escuro, abafado, parecendo uma sauna, pessoas peladas passando de um lado pro outro e Matias indo à minha frente, segurando a minha mão, achando aquilo tudo fantástico. É claro que ele não me falou nada, mas o passo apressado dele denunciava. Negro safado. Me senti excluído ali, porque não queria participar de nada, só estava o acompanhando. E ele, abusado como era, já estava, certamente, esperando alguma diversão por ali. Não demorou muito e nos separamos cada um para um canto. É lógico; um crioulo gostoso daquele com um membro daquele tamanho Nossa, que feio falar “crioulo”, assim. Ah, já estou velho mesmo. Ele foi, eu fiquei, dando um jeito de me esconder em qualquer canto. Não queria que ninguém me achasse ali. Era engraçado, esse lugar, tinha uns cômodos que... Tinha uma parede com um buraco e desse buraco saía um pênis ereto. Tá bom, confesso que quando vi essa cena eu não resisti e, já que estava ali pra isso mesmo, fui satisfazer meu lapso de luxúria. Era um pênis muito bonito. Como é que se avalia a beleza

Eu não me lembro, não me lembro quanto tempo demoramos lá. Sei que nos perdemos por um bom tempo. Ele foi pra um lado, eu pra outro, depois nos reencontramos... não. Não sei. A gente mandou mensagem um pro outro? Eu fui embora? O que aconteceu? Fui embora, eu acho... Fui embora e mandei mensagem Isso! Ele não me atendeu quando liguei. Fui embora pra casa e esperei que ele desse sinal de vida, mas ele não deu, daí fui dormir e acordei só no dia seguinte me sentindo... muito mal. Ele estava do meu lado, desmaiado, no sentido de... Eu tomei um banho e fui fazer minhas coisas, depois ele acordou e me contou que transou com um casal por lá, mas não fiquei enciumado nem nada, mas também não achei excitante. Os dias foram passando e as coisas continuaram as mesmas. Eu amava aquele homem... Amava tudo nele, tudo que ele despertava em mim, tudo que a gente fazia, eu sabia que era amor. Que horas são?

Num belo dia eu achei ele estranho comigo. A gente nunca mais tinha ido pra lugar nenhum desse tipo, foi só aquela vez. Num belo dia ele chegou e me disse que tinha uma ideia.

“Você não acha excitante?”

Ele sempre tinha dessas ideias estranhas e eu sempre aceitava, e essa, da mesma forma, eu aceitei porque não achei

“E se a gente fosse solteiro por uma semana?”

Não achei nada demais, até porque Bem, eu não era assim tão ciumento, embora ele fosse. Mas por que ele queria isso, hein? Ele morria de ciúme de mim, e olha que quem dava trabalho era ele. Eu sempre fui quieto, mesmo quando mais moço, e escolhi muito bem meus parceiros. O gato noturno era ele, que tocava nesses bares e fazia a alegria das bichas todas.

“De onde tirou essa ideia?”

Eu aceitei, né? Sempre acreditei naquela de que o que é seu volta, se não voltar é porque não era. Muito clichê, diga-se de passagem, mas eu sou um velho clichê, já tenho idade suficiente pra isso. Eu tinha certeza que isso era coisa daquela ida na casa de suingue... Aquele antro.

“Não, não acho.”

“Poxa, Ricardo, você anda muito careta.”

Imagina. Eu aceitei. A gente já namorava há o quê? Um ano, naquele tempo? Ou mais? Acho que é isso. No mês seguinte a gente começou a fazer esse esquema. Durante uma semana a gente não se viu nem se falou nem nada. Eu morri de saudade, é lógico, e não fiz nada durante essa semana, até porque não fui atrás Ou eu não queria? Não me lembro. Eu tinha dispensado uns dois, uma vez, porque estava namorando o Matias, mas não fui atrás deles... Fui? Não, não, outra vez acabei beijando um rapaz novinho, mas não era nenhum desses. Matias deve ter pegado muitos, mas ele não me falava. Ele dizia quando ficava com um ou outro, mas nunca me dava números; acho que ele queria me poupar. Acho que isso foi coisa daquela casa de suingue. Que ideia mais maluca. Será que as pessoas fazem coisas desse tipo hoje em dia? O que é que os casais fazem hoje em dia? Depois esse acordo só piorou. Passamos a ser solteiros durante três vezes no ano; tínhamos uma semana de liberdade a cada quatro meses. O primeiro foi esse, depois vieram mais outros. Fiquei com o quê? Uns dez, ao todo, nesses três anos? Ou foram cinco anos? Idiota. Olha quantas oportunidades eu perdi. Ele deve ter aproveitado todas. Ah, se aproveitou!

“Ricardo, a gente precisa conversar.”

Nenhuma boa conversa jamais começou assim. Matias veio com esse papo pra cima de mim numa sexta-feira, dia vinte e oito, minha idade quando começamos a namorar, e me chamou pra conversar no meu quarto. Noite mais desgraçada da minha vida.

“Benício.”

O pior é que o filho da puta era lindo. Eu me achava bonito naquela época, eu acho. Digo, nunca me faltou companhia, embora eu não fosse nenhum Adonis. Ah, eu tinha meus atributos.

“O que foi? O que quer conversar?”

Ele se sentou ao meu lado na cama e abaixou a cabeça. Fiquei olhando e esperando ele falar.  

“Eu conheci outro cara.”

Acho que, quando eu aceitei aquele acordo, eu não imaginava que isso pudesse acontecer, senão não teria aceitado. Ou teria? Eu faria qualquer coisa por aquele homem, meu Deus.

“O quê?”

“Foi numa das nossas semanas de solteiro, não se A gente tá saindo há mais de um mês, Ricardo... me desc Eu estou apaixonado p Eu não te amo mais,”

Filho de uma puta. Os dois. Não, não posso culpar

“Qual é o nome dele?”

“Benício”

Ele não teve culpa de nada, acho que não sabia. Pelo que conheço do Matias, ele não teria Ou teria? Sempre fomos fiéis um ao outro. Isso não é infidelidade, não posso dizer. A gente tinha um acordo; só saíamos com outros caras durante a nossa semana. Ele certamente conheceu Benício em uma dessas semanas, mas acho que poderia ter me contado antes, não? Não sei quanto tempo... Espera. Eles estavam saindo há mais de um mês, então ele me traiu, sim... Ou eles só se encontravam nas nossas semanas de férias? Por que é que eu fui concordar com isso? É tudo culpa minha. Não, é tudo culpa minha. Deixei que ele conquistasse meu coração, mas ele não tinha a intenção de me amar. Não, Ricardo, não é bem assim... É. Eu nunca vou saber, nunca mais. Benício tirou ele de mim, eu que pensei que nunca perderia o que era meu. Matias nunca foi meu como eu fui dele. Me apaixonei sozinho. Ele foi tão... tão... que ainda transamos pela última vez antes d’ele sair de vez da minha vida. Em silêncio. Noite memorável, e triste, aquela. Meu corpo se despediu do dele e o dele, do meu. Pra sempre. Ainda me lembro de vê-lo sair por aquela porta e arrancar um pedaço de mim que eu nunca mais reencontrei. Ah, meu coração tão fraco...

Mais de trinta, ou menos? Quantos anos se passaram até agora? Já faz tanto tempo... mas eu ainda me lembro. O som desse maldito sax ainda me assombra e eu vejo Matias por toda parte, especialmente nas ruas e nos meus sonhos mais tristes. Acordo procurando por ele, mas ele nunca está lá. Vejo-o no rosto de quase todos os mulatos altos, magros, sensuais que passam perto de mim. Como estaria ele agora? Ele deveria se tornar um velho muito bonito. Benício também era bonito, não posso negar. Conheci-o pouco depois do velório. Marcela me deu a notícia. Pouco mais de um ano havia se passado desde que perdemos contato, mas ele e Marcela continuaram amigos. Num desses dias de outono ela chegou me contando.

“Não... Não acredito...!”

Não sei o que senti. Acho que, acima de tudo, raiva. Eu perdi tanta coisa, tantas oportunidades, tanta felicidade por causa dele, por causa daquela casa, por causa desse acordo desgraçado! Por que é que eu fui aceitar aquilo, Deus?!, por quê?! A culpa deve ter sido minha no final das contas.

“Eles morreram na hora.”

Estavam indo viajar, os dois, pra casa de praia do Benício, em São Paulo. Chovia muito e o carro em que eles estavam derrapou em uma curva e se chocou com um caminhão que vinha no sentido oposto. Eles morreram na hora. Desgraçados! Se nada daquilo tivesse acontecido, se não tivéssemos feito porra de acordo nenhum, poderíamos ter sido felizes! Eu amava tanto, tanto aquele homem... Imagina se tivéssemos sido fiéis um ao outro, se não tivéssemos ido àquela casa de suingue imunda, horrenda, sub-humana, ah! Que ódio! Por que a vida fez isso comigo? Por que tirou de mim o único homem que verdadeiramente amei?! Por quê?! Por que é que minha memória não o apaga d Matias está morto. Trinta anos? Droga. Ou menos? Nunca mais, nunca mais amei ninguém. Matias foi meu horizonte, minha vida toda, e vai ser, ainda, a minha morte. Não sei o que fui pra ele. Devo ter sido uma diversão duradoura, alguém a quem ele quis bem e nada mais. O que é que importa agora? E esse saxofone ainda há de me matar. Deixa eu ver se tenho aqui uma moeda pra dar pra esse rapaz e ir embora daqui, que eu ainda preciso comprar os meus remédios. 

Um comentário :

  1. Que conto suave, Natinho. Achei bem a sua cara, apesar do final ~morte que o Romrom gostaria~, é de uma delicadeza tremenda. Gostei bastante dos momentos um pouco alineares, como as trocas de fala. Puro talento! :3

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