quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Da fragilidade dos relacionamentos imaginados

Escrevo este ensaio de maneira particularmente empírica, e o escrevo porque os fatos que aqui vão ser citados me levaram a pensar em algo em que eu nunca havia pensado, e que não sei se as pessoas que falam sobre o contrário do que eu vou falar algum dia pensaram.

Explico. Antes de tudo, deixe-me deixar claro meu ponto: vou me referir neste texto aos mui conhecidos crushesCrush, em Inglês, é uma palavra utilizada para designar aquela pessoa por quem você tem uma queda. Não importa a altura da queda: se você olha alguém com outros olhos—olhos desejosos, de preferência—, podemos dizer que esse sujeito ou essa sujeita é seu ou sua crush.

O que quero colocar em questão aqui, porém, é o imaginário que criamos em torno desse crush e a falibilidade desse mesmo imaginário. Falo em falibilidade porque, no nosso ideal romântico, aquele crush é alguém que está além das nossas capacidades, alguém inalcançável, alguém que poderia nos fazer felizes de maneira indescritível e que nos mostraria um lado mais doce da vida. A concepção de crush nestes tempos de amor líquido se aproxima bastante do ideal platônico e romântico do amor não correspondido, da donzela idealizada pela qual o eu lírico se mata ou vive em desgosto... Vamos colocar um freio nisso? 

Vamos. Retomando o que eu disse no começo, escrevo este ensaio porque eu tive um crush e meu crush se tornou real. Sim! Viu como não é impossível? Mas, para universalizar as medidas do meu pequeno relato, vamos dar às personagens do roteiro nomes também universais e, por que não?, heteronormativos, deixando, desde já, a observação de que a universalidade desta história é tal que o gênero dos envolvidos é o de menos, sendo que um poderia ser o outro e o outro poderia ser um sem grandes alterações nas consequências dos eventos. Chamemos nossos protagonistas de João e Maria.

Maria, ao contrário da jovem internauta moderna do século XXI, não é o arquétipo da menina antissocial e forever alone do rolê: ela é inteligente, engraçada, bem resolvida, tem amigos, participa ativamente de redes sociais, recebe várias curtidas em suas fotos e postagens, fica com os caras que a interessam de vez em quando... Maria está na média; não é exímia em nada, mas também não é mesquinha em nada; faz bem tudo que faz e está quase sempre de bem com o mundo.

Nos intervalos da faculdade e nos acasos da vida, Maria sempre vê um garoto cujo nome não sabe, mas nós sabemos: João. João é um rapaz sério, aparentemente tímido, estudioso, dedicado, que também não é nenhum nerd esquisito: é só um rapaz sério, que sempre chega cedo, presta atenção nas aulas, lê todos os textos, não fuma, não bebe, não gasta dinheiro nas festas com a galera; quer fazer mestrado e, um dia, ser professor universitário.

Mesmo sem saber nenhuma linha da citada pequena biografia de João, nem sequer o título, que revela o nome do rapaz, Maria instantaneamente (até porque essas coisas se desvelam de um segundo para o outro) desenvolve uma queda por João a primeira vez em que o vê: ele é seu crush. Em termos práticos, isso quer dizer que Maria pensa nele às vezes; Maria pensa que seria legal se aproximar dele e conhecê-lo; que seria legal beijar a boca dele; que seria legal transar com ele, saber como ele se comporta na cama; se ele deita, vira e dorme ou se ele é um amante medíocre; isso quer dizer que Maria passa por ele ao lado da faculdade e tenta aproveitar cada segundo possível para admirar a beleza de João, que não é nada monumental, mas que, para ela, é extraordinária! Maria indaga como é olhá-lo assim que ele acorda, como é dormir ao lado dele, como é a voz dele, que ela nunca ouviu. Maria se pergunta, delira levemente, acordada, mas, o mais importante: sua vida não se movimenta um milímetro para leste ou oeste em virtude da mera existência de João. Ele é seu crush, mas, ciente da impossibilidade da existência de qualquer envolvimento entre eles, Maria guarda essas considerações imaginárias com carinho em um lugarzinho fofo de seu coração e segue a vida tranquila, sem maus sentimentos.

Até que um dia, de repente, não mais que de repente, a vida apronta uma daquelas e, acidentalmente, coloca Maria e João em contato. Não importa como: pode ser pessoalmente, por meio de um amigo em comum, ou pela Internet, pelo Facebook; um dos dois pode seguir o outro no Twitter ou no Instagram, ou eles podem se encontrar em um café e começar a conversar sem um motivo razoável. O que importa é que Maria e João se encontram e, nesse momento, para a surpresa e espanto de Maria, ela descobre que, da mesma forma, ela é o crush de João! Sim! Ele tinha uma queda por ela da mesma forma que ela tinha uma queda por ele! E nenhum dos dois jamais soube disso até o momento em que se encontraram e conversaram pela primeira vez nesse instante variável!

Como seres humanos diferentes que são, cada um recebe a surpresa do crush compartilhado de uma maneira. Maria, mais romântica e sensível, acha tudo o máximo. Que incrível saber que o cara por quem ela se apaixonou de levinho nutria algo por ela da mesma maneira! João, por outro, menos robusto na expressão de seus sentimentos, demonstra uma felicidade corriqueira, taciturna. O importante é que o resultado desse encontro e dessa descoberta é claro: os dois vão marcar um encontro para se conhecerem melhor.

O primeiro encontro acontece dentro dos moldes clássicos: uma ida ao cinema. Depois de dois dias conversando sobre assuntos amenos e sem profundidade, aprendendo aos poucos o comportamento do outro, eles se encontram pessoalmente no shopping. Maria está vestida como se vestiria em qualquer ocasião; não quer impressionar nem dar a entender que se esforçou demais para ficar bonita só por causa de João. Igualmente, João se veste sem exageros. Eles compram chocolates, cada um paga seu ingresso e, por fim, eles entram na sala de cinema. Não há grande tensão entre os dois; Maria se sente à vontade e João também parece se sentir.

Em certa altura do filme, ao qual ambos de fato assistiam, acontece o primeiro beijo, que é deveras desajeitado, pois beijar no cinema, no escuro, com pessoas ao lado, é sempre desajeitado. Depois vêm o segundo e o terceiro beijo e esses são também desajeitados. Não são ruins, mas ainda precisam de ajustes: ao contrário das cenas mais piegas, o encaixe da boca dos dois não é perfeito de imediato. Fim do filme, eles saem da sala de mãos dadas e vão comer; depois vão para suas respectivas casas e continuam a conversar pelo WhatsApp.

Na manhã seguinte, João envia uma mensagem de bom dia, o que deixa Maria bastante satisfeitinha, pois era exatamente isso que ela esperava dele: que ele não a considerasse apenas uma peguete por um final de semana. A conversa segue os mesmos termos superficiais. O jeito-de-ser de João não era exatamente como Maria idealizara. Muito estudioso, ele sempre estava lendo alguma coisa ou preocupado com alguma prova; falava de assuntos que pouco interessavam Maria e parecia um tanto... infantil, às vezes. Dos defeitos mais evidentes dele, sobressaiu-se sua excessiva sinceridade, que ele sempre julgara ser muito positiva. De maneira não tão sutil, ele tentou deixar mais ou menos claro que não estava à procura de nada sério no momento, que não queria namorar, que tinha medo de frustrar ou desapontar a outra pessoa. Embora Maria sentisse uma dorzinha arder em seu coração ingênuo quando entendia essas sub-linhas que João escrevia, ela deixava passar batido, afinal ela também não estava necessariamente em busca do amor de sua vida—tampouco tinha certeza de que era João o cara que ocuparia esse posto.

Ainda assim, ela sentia que poderia existir algo bonito entre eles. Desse modo, os dias passaram. Eles se encontravam na faculdade, conversavam, davam uns beijinhos quando não tinha ninguém por perto, trocavam afagos inocentes, conversavam bobeiras. Dez dias depois, acabaram transando, o que também não foi o evento do ano. João era um 6, de 0 a 10, mas o aftermath, a conchinha morna na noite de inverno, o cuidado que ele tinha, o toque da mão dele sobre a dela... Essas coisas, somadas ao fato de que aquilo era real, aquilo estava mesmo acontecendo, faziam o todo valer a pena.

Maria chegou a apresentá-lo para os pais, coisa que aconteceu sem-querer-querendo, uma noite em que João dormiu na casa dela, e estes sempre lhe perguntavam: “E o João?”, ao que ela sempre respondia: “Tá bem...”. O relacionamento era estável, sem grandes emoções, sem altos e baixos, sem perspectivas futuras. Maria pensava nele ao longo do dia, eles trocavam mensagens (sendo que, na maioria das vezes, era ela quem o chamava), combinavam os passeios do final de semana, falavam sobre o frio, sobre a chuva, sobre a família, sobre a faculdade, sobre os professores, sobre o preço dos textos, sobre o mestrado, sobre os outros, sobre tudo e sobre nada.

Até que, um mês depois, as conversas foram ficando mais esparsas. Já conhecendo o modus operandi de João, Maria entendeu que aquele era o jeito dele: calado, quieto, mais na dele. De quando em quando ele a procurava; quando ela o procurava, era sempre bem recebida, mas digamos que a frequência com que estabeleciam contato caíra significativamente. Ninguém estava perdidamente apaixonado; não haviam tido tempo para tanto, mas Maria começou a se perguntar se havia feito algo errado ou se talvez João não estivesse mais a fim. Porém, todas as suas tentativas de entender o que acontecera resultaram em: nada aconteceu; tudo estava bem.

Apenas quando passaram seis dias inteiros sem se falar é que Maria resolveu ir direto ao ponto e perguntar via WhatsApp: “Não me conhece mais?”. E apenas quando, duas horas depois, João simplesmente respondeu: “Tô ficando com outra menina, foi mau” é que Maria se deu conta de que não existia mais nada entre eles.

Ninguém chorou, ninguém sofreu; mas o ódio que explodiu dentro do peito de Maria foi o suficiente para deixá-la atordoada por inúmeros dias. A primeira atitude, depois de uma quase-briga, que ela evitou por saber que aquilo não levaria a nada, foi excluí-lo do Facebook. Maria jamais excluíra ninguém do Facebook, mas o que ela sentiu por João naquele instante foi a vontade de fazer exatamente o que aquele ato simbólico representava: expulsá-lo sumariamente de sua vida. Depois da raiva, veio a revolta; depois da revolta, a indagação; depois da indagação, finalmente, a conclusão mais evidente:

João era um filho da puta.

Mas João era um filho da puta de calibre tão alto que nem se Maria ou qualquer outro ser humano tentasse mostrarexplicar a ele sua filhadaputice ele entenderia; João não tinha inteligência emocional o bastante para entender o que era ser filho da puta, pois, em sua cabeça cuzona, ele deixara tudo muito claro e Maria, que era boa entendedora, deveria ter lido suas palavras não ditas e entendido que ele não a desejava mais e que nunca quis nada sério com ela, e que essa cláusula contratual o isentava de uma lista de responsabilidades, incluindo a de informá-la de que ela estava dispensada. Maria era inteligente, sabia das coisas, não precisava de um reles e explícito “Não quero mais ficar com você”. Pergunto-me por quanto tempo isso teria se estendido se ela tivesse mantido o silêncio de seis dias. 

Maria tinha uma queda por João. João tinha uma queda por Maria. Maria teve a chance de realizar sua fantasia romanesca e ter um relacionamento relâmpago com João e responder a si mesma todas as perguntas que se fazia quando o via. Maria sabia o gosto do beijo dele, sabia como ele transava, sabia como era acordar ao lado dele, conhecia a voz dele, sabia das coisas que ele falava, conhecia seus hábitos, passeou brevemente por seu mundinho particular; e acabou descobrindo algo que seus olhares rápidos pela silhueta sempre apressada dele passando pela faculdade nunca foram capazes de capturar: João era um babaca.

Nenhum comentário :

Postar um comentário

Seja gentil. Palavra feia não se diz.