terça-feira, 20 de maio de 2014

O mundo em meus olhos

Eu não saberia te explicar como vim parar aqui, assim como não saberia te dizer quando ou sob quais circunstâncias nasci. Sei apenas que existo e estou aqui, também não sei há quanto tempo. Acordei assim. Não tenho memórias da minha vida, nem sei se tenho vida. Não sei o que veio antes de hoje e acredito que amanhã este dia se repetirá, e depois de amanhã também, e para sempre, até a morte, se ela vier. Não sei se ela sabe o caminho pra cá, ou se ela sabe que há vida aqui, ou se há vida afinal. Moro onde talvez ela não me encontre, mas não fiz de propósito: estou aqui porque sim.

Moro numa casa simples: um cômodo. Um cômodo, um banheiro e uma cabine. Tenho cama, colchão, comida, sanidade e silêncio. Não sei cozinhar, mas ainda não morri de fome. Não preciso me alimentar, talvez porque a comida sempre aparece sobre a mesa ou dentro da geladeira que não existe sem que eu precise comprar, o que seria impossível, já que não existe outra alma senão a minha neste lugar sombrio. Também tenho um espelho, mas não consigo me ver muito bem. Talvez minha visão seja comprometida e eu precise de óculos. Vejo traços esparsos e uns contornos um tanto abstratos. Mas, se olhar pra baixo, consigo ver meus pés e o chão em que piso. Na minha casa tem uma televisão e telhado de madeira barata, que nunca despencou, mas acho que vai, porque o tempo não está nada bom.

Ouvi dizer que este mundo aqui vai acabar por causa da tempestade, o que é engraçado, pois não conheço outra voz senão a do meu pensamento. Não sei falar, só sei pensar; e não sei se o som do meu pensamento seria o som da minha voz. O céu está o de sempre, mas, hoje, mais grave: aqui, não existe noite nem dia, nem sol nem chuva, nem frio ou calor. Existe o Céu e só, e Só. Nem azul nem nublado nem negro ou estrelado: o céu daqui é de um marrom cor de terra que se mistura a tons mais claros de marrom de nuvem e torna minha vida um tom pastel. Não sei o que é luz ou o que são trevas, mas lá em casa tem uma vela que nunca apaga. Uma vez tentei sair, fugir. Cansei-me daqui e fui andando. Alcancei uma pradaria de grama tão marrom quanto o céu, talvez um pouco mais escura, e caminhei por minutos que não contei. O horizonte se mantinha imóvel diante dos meus olhos, e a vegetação seguia junto comigo. Olhando pra trás, então, percebi que minha casa estava exatamente no mesmo lugar. Ela me acompanhava ou eu não saíra do lugar.

Então desisti de escapar. Meu mundo era tão infinito quanto eu; eu pertenci a ali. Mas acho que isso tudo vai acabar. Há uma tempestade, e ela ameaça cair há meses. O tempo aqui é eterno; um dia são dezenas; não sei se ela virá ou não, mas temo que, quando vier, ela há de acabar com esse eterno anoitecer. Mas não tenho medo. A solidão me amargura, mas não sei o que é ter companhia. O Silêncio me acompanha durante todo o tempo, e não conheço outro som senão os do meu pensamento e o do ranger dos meus dentes enquanto mastigo um pedaço do pão que me alimenta todos os dias. Não conheço outro sabor senão esse.

Não sei ser feliz ou triste, mas sei esperar. Espero por um começo, meio, ou fim, que não sei dizer se virá. Meu mundo se cansa de mim, mas eu não me canso dele. Talvez por isso ele se acabe: eu já o esgotei. Sei sonhar, também. Sempre sonho que estou em lugares que não conheço, com pessoas que não sei quem são, fazendo coisas que não sei fazer. Quando acordo, minha vela me observa e me lembra de que meus sonhos só duram enquanto meus olhos são fechados. E eu suspiro e me sento à porta novamente, olhando aquele objeto redondo que enfeita meu Céu mas não é nem sol nem lua. Não sei o que são estrelas. Gosto das nuvens, entretanto, embora elas me pareçam artificiais. Sinto que eu poderia tocá-las se eu subisse em uma cadeira, mas aqui não tem cadeiras.

Uma vez sonhei com um carteiro. Ele me perguntava o nome daqui, e eu não sabia responder. “Vai ter uma moça aqui”, ele disse.  Eu também questionei e ele também não soube explicar. Falou sobre sentimentos e tentou me explicar o que era amor, mas fracassou. Talvez fosse mais fácil me explicar o que era o verde que eu nunca vira naquele mundo marrom. “Você não vai ficar aqui pra sempre”, ele continuou. “Como sabe disso?” ele também não conseguiu dizer. Era difícil nos comunicarmos sem palavras; nossos pensamentos se transmitiam, mas eu não conseguia sentir aquele homem de cabeça branca e uniforme estranho. “Tem correspondência?”, eu perguntei.  “Pra você?”, ele quis saber. “Claro”, respondi. “Você não existe; quem te mandaria cartas?”

Acordei achando aquele sonho um tanto estranho, eu me lembro bem. Você já sonhou com algo que não conhece? Sonhei com um homem... que vestia um uniforme... e falava de amor... O que é o verde, afinal? Imagino que as coisas devam ser bonitas fora daqui, e também gosto de acreditar que fora deste universo existam outras pessoas menos solitárias do que eu. Não me importo com a solidão porque não sei sentir, mas às vezes é como brincar demais com um brinquedo legal, sabe? Não tenho mais o que extrair da solidão: a solidão sou eu; é ela que me sente. Quando procurei, lá fora, por alguém pra falar comigo, só senti o vento bater no meu rosto, mas sem fazer barulho algum, por isso voltei e não saí mais, por muito tempo; um tempo que eu não sei dizer, porque não sei o que é tempo, afinal. Esta casa vazia não é meu lar, essas horas mudas não são minha vida, meu não-existir é minha indagação irresoluta, aquele carteiro foi tudo que tive.

Minha profecia não poderia estar mais certa. Acordei de novo e olhei pela porta da minha casa, isolada no centro de Nada, e olhei para o Céu, e lá estava a Esfera Sem Nome, olhando pra mim. E, pela primeira vez, houve som! As folhas da vegetação farfalhavam e produziam um barulho incrível!, incrivelmente assustador! Depois, um estrondo muito forte, algo que, assim como todos os sons, eu jamais ouvira, agrediu meus ouvidos e me fez soltar um grito — sim! Um grito! Eu ouvi minha própria voz! E depois se fez luz! E água! E vento! E num piscar de olhos, perdido no meu riso inédito, eu me vi me desfazer num vórtice que girava mais rápido do que mil velocidades que eu jamais conhecera e acordei sobre a cama de um quarto cheio de cores que eu também jamais conseguiria explicar, mas conseguia ver.

Eu estava vivo.

Eu não sabia o que eram todas aquelas coisas, mas devagar fui aprendendo. E me lembrei de minha história, ou de pedaços dela, e fazia vaga noção de como havia parado ali. Eu sabia que nascera, que tinha um nome, do qual eu ainda não me lembrava, e de que uma série de coisas estava prestes a acontecer. Então levantei-me e saí dali. Olhando pela primeira janela que me veio à frente, vi o Mundo. Tantas coisas que eu não conhecia! Tantas coisas pra aprender a nomear! O Céu agora tinha cor! Tudo tinha cor! Meus olhos maravilhavam-se de Novo! As coisas começavam a ganhar nomes na minha mente: prédios, casas, carros, e logo outros seres iguais a mim — pessoas! Muitas pessoas! E sons de todas as sortes! Corri até a porta e saí daquela casa, andando sem rumo, olhando tudo ao meu redor. Sorri e, pela primeira vez, senti um calor no peito, uma sensação... uma Sensação! E me vi no espelho: eu tinha um rosto, e contornos, e um sorriso! Então corri, com aquela Sensação e sem rumo. O Tempo agora era móvel: as nuvens passeavam pelo céu e a Esfera Sem Nome tinha um brilho forte, que logo ficou opaco e deu lugar a outra esfera — Sol e Lua, eu sabia seus nomes! E estrelas! E, pela noite, voltei ao quarto onde acordara e me deitei, sentindo ainda aquela Sensação que, aprendi, se chamava Alegria.

Nos meus sonhos, encontrei o carteiro novamente. “Tem carta”, ele disse, entregando-me um envelope. Ela virá, dizia o bilhete. “É só isso?”, perguntei. “É, sim”, ele respondeu. “Você sabe o nome daqui?”, perguntei. “Este lugar ainda não tem nome”, ele respondeu, “mas vai ter”. “Quem é você?”, quis saber. “Sou um carteiro: entrego correspondências e sei das coisas”, ele disse. “O que aconteceu comigo? Por que estou aqui?”, questionei, guardando minha carta no bolso. O carteiro me olhou com aparente desconfiança e, analisando-me, respondeu após alguns segundos: “Você acabou de nascer. O mundo é novo; você vai ter tempo”. “Mas o que sou eu?”, perguntei. E ele riu, achando tola minha pergunta, certamente. “Você é o livro que não foi acabado; o poema que não foi escrito; o personagem que não foi inventado... Você é aquele projeto abandonado, esquecido; aquele rabisco no papel que não virou estória; aquele homem apaixonado que não descobriu o amor; você é a vítima do crime do poeta”. O carteiro coçou o nariz e ajeitou os óculos sobre o rosto. “Mas você teve sorte: está aqui porque nasceu, mas sua história acabou de começar a ser escrita, e deste livro eu não farei parte”, continuou. “Mas... o que vai acontecer comigo quando esta história acabar?”, perguntei, confuso. “Você será imortal”, respondeu o carteiro antes de desaparecer.

Ela virá, dizia o bilhete. Eu não sabia quem era ela ou se ela de fato viria, mas o mundo resplandecia em frente aos meus olhos: eu não poderia duvidar. Meu quarto agora tinha cor e o mundo tinha luz. Meu universo era maior e minha cama, mais confortável. Meu coração era quente e as coisas tinham nome. Eu acabava de nascer com a certeza de que logo seria imortal. Sabia que ela viria, e queria muito conhecê-la. Voltei para o meu quarto e acordei sob cobertores macios com a luz do sol batendo forte janela adentro.

— Vamos acordar, meu amor? Olha como o dia está lindo! – disse Beatriz abrindo as cortinas.

Sorri. Minha história começava a ser escrita.

Um comentário :

Seja gentil. Palavra feia não se diz.